A pintura antifurto de Pedro Victor Brandão: política como arte no contexto de crise econômica mundial – Marcelo Neder Cerqueira, 2011
Apresentado no debate de encerramento da exposição Pintura Antifurto na Casa França-Brasil, em 20 de outubro de 2011 e publicado na Revista Simbiótica nº7 em 2014.
Quando saiu a Pintura Antifurto de Pedro Victor Brandão eu pensei: “acertou mais uma”. Digo “acertou”, pois creio ser também tarefa do artista estar atento às transformações do tempo, não só da crônica do dia-dia, mas dos fluxos históricos e dos processos mais longos de transformação que conduzem cada instante. Uma obra de arte, seja qual for, sempre vive no presente e para o futuro. Lugar de artista não é na montanha, isolado. Imanência é seu princípio, que, assim como a vida, segue na morte, na constante experiência de transformação. Saber se colocar no campo, decifrar os movimentos a cada novo instante, intuir o movimento da bola; são inúmeras as metáforas do futebol que expressam sua prática na condição artística. A chave está na leitura do tempo e do espaço; e no como agir no correr do instante face esta leitura. O futebol transpira a dialética maquiaveliana entre fortuna e virtú. A Pintura Antifurto de Pedro Victor também reúne essa qualidade. Para Maquiavel, a política deve ser entendia como arte – esta talvez seja a chave de leitura mais aguda que ainda hoje produz tanto desconforto aos centros hegemônicos de poder empapados de teologia-política. Não estou assim no mesmo diapasão dos que pensam uma “arte verdadeira” como fantasia de eternidade ou perenidade; como elevação ou descoberta de um espírito ontológico, que vive acima ou fora do tempo. O que leva a duração ou a força de um discurso artístico – que se realiza pela experiência sensível – não está em alguma espécie de vitória sobre a morte, senão o contrário: na sua vivência íntima e constante; quer dizer, uma condição tal onde a própria ideia de vitória ou derrota parece perder o sentido: o que vale é a travessia.
“Acertou mais uma vez”. Não digo isso simplesmente pela situação curiosa promovida pela onda de assalto a caixas eletrônicos, que, afinal, está na origem da apropriação estética de Pedro e de alguma forma veicula e multiplica oportunamente o seu discurso. A nota manchada de rosa pelo chamado “dispositivo antifurto”, como alternativa irônica promovida pelas agências bancárias para uma questão social muito mais complexa, desorienta a multidão. Não só porque não resolve o problema, ou porque implica o risco de se perder o dinheiro, mesmo agora sendo as agências bancárias obrigadas a trocar imediatamente as notas manchadas. A ironia está na denúncia contingente do caráter virtual do dinheiro; na demonstração nua e crua do elemento de crença que força o consentimento e o aceite da sua violência. Aquele mesmo dinheiro que possivelmente o sujeito se matou de trabalhar para receber pode, então, ser rapidamente destituído de seu valor. A nota manchada de rosa, manifestando-se como arbitrariedade, quebra o sistema de fé e confiança que caracteriza a lógica dos mercados capitalistas. Na central de autoatendimento, o sujeito encontra-se então desamparado – e nesta furtiva experiência moderna de desencanto, produz-se de repente o velho e novo anúncio da morte de Deus. Mesmo quando os lemas “In God we trust”, impresso nas cédulas do dólar norte-americano, ou o nosso “Deus seja louvado”, no real brasileiro, queiram nos convencer do contrário.
A ação criminosa – roubar um caixa eletrônico – que subverte as regras da distribuição de renda e poder da nossa sociedade, e o consequente uso do “dispositivo antifurto”, acabam promovendo uma experiência de questionamento sobre a validade e a realidade da moeda. O dinheiro, então, sai do campo celestial e abstrato da ordem econômica e manifesta sua qualidade política. Possivelmente uma experiência traumática, mediante o ainda recente passado de hegemonia neoclássica que através da repetição midiática dos chicago boys e dos ideólogos do laissez-faire insiste em pensar a economia como um sistema abstrato fechado nos seus próprios termos – mas que, lembrando as palavras de Paul Sweezy, “padece de inevitáveis insuficiências lógicas”.
Não são apenas os curiosos “dispositivos antifurtos” que na sua experiência de estranhamento acabam por manifestar a qualidade política do dinheiro: também – e especialmente – as situações de crise econômica, como a que o mundo está vivendo hoje em dia. O fenômeno vem generalizando-se e pode ser identificado, de formas variadas e contraditórias, em diversos protestos nos EUA, na recente onda de saques na Inglaterra, nas ocupações de praças na Espanha, Grécia, Itália, na ocupação de Wall Street que completa já um mês, no crescente questionamento da Guerra ao Iraque, nas reivindicações dos estudantes chilenos pela garantia do ensino público – justo o Chile, que dentre os países da nossa América possivelmente sofreu as maiores consequências do neoliberalismo durante a ditadura militar de Pinochet, servindo como laboratório da escola econômica dos seguidores de Milton Friedman. Num olhar de esguelha, o “dispositivo antifurto” encetado pelas agências bancárias distribui a validade/virtualidade da moeda de uma forma não muito diferente de como se faz na bolsa de valores; especialmente da maneira como fizeram – sem qualquer responsabilidade, sem qualquer garantia futura das apostas e investimentos, e ainda com a irônica semelhança do princípio de socialização dos prejuízos que nos momentos de crise financeira desponta como “saída necessária”, pressionando o repasse dos cofres públicos para cobrir suas dívidas particulares; fazendo parecer a crise sistêmica de reprodução do capital algo passageiro; mas por quanto tempo?
Vamos falar então do assalto dos bancos. Como seria um “dispositivo antifurto” adequado contra os especuladores? Poderia ser o assalto ao caixa eletrônico e a nota manchada de tinta, de alguma forma estranha, outro lado distorcido, que fala à ação criminosa, irresponsável e arbitrária, agora sim, cometida pelos bancos e pelo mercado financeiro? Neste caso, poderíamos ler a Pintura Antifurto, de Pedro Victor Brandão, e a sua Ocupação Cofre, como possíveis dispositivos estético-expressivos a instrumentalizar nossa criatividade e apurar nossa sensibilidade na crítica da ideologia e na busca por alternativas? Bom, não podemos manchar as notas virtuais que os especuladores jogam no futuro, porque elas não existem. Mas podemos denunciar a mancha constitutiva do capital, que como já dizia Marx, “nasce banhado em sangue”. Talvez não seja rosa a cor da nota; antes vermelho. Mas para isso não é preciso de nenhum dispositivo específico, nem tinta; o capital já nasce avermelhado. O que se precisa é aprender a enxergar a sua violência, desvelando as relações de poder que no capitalismo moderno tendem a manifestar-se maquinalmente, como relações impessoais e involuntárias entre objetos e homens-coisas; como se não fossem relações sociais que servem a interesses específicos. A Pintura Antifurto de Pedro Victor ganha fôlego face à conjuntura política mais ampla; e da situação pontual do assalto ao caixa eletrônico (do assalto à máquina) somos carregados pela força da imagem – a nota avermelhada, ensanguentada – que inevitavelmente fala mais alto e inquieta nossos corações e mentes.
A vivência fronteiriça e entrelaçada da ficção com a realidade, entendida como denúncia da arbitrariedade e crença que vigora na distribuição do poder de mando e da obediência na sociedade percorre diversas obras e performances de Pedro. Um mesmo sentido pode ser identificado quando, através de uma alteração digital, uma galeria de arte transforma-se em uma loja Starbucks; ou quando o artista vende composições fotográficas que se autodestroem pela luz; ou quando suas paisagens não-civilizadas apontam, por fim, para a barbárie do padrão de urbanização da cidade; ou quando através do coletivo OPAVIVARÁ! instaura um sistema de trocas de performances artísticas a partir de uma moeda de argila (Moitará): a problematização da arte como mercadoria pode ser vista como um tema chave que passa por diversas experiências estéticas do autor, produzindo pequenos curtos circuitos na transvaloração das relações de poder sacralizadas e tidas como naturais. A sua Pintura Antifurto não é exceção. A mercadoria artística manifesta-se como processo arbitrário de valoração; acaba por destituir a crença de um valor em si, pretensamente objetivo e “real”, denunciando no elemento arbitrário e virtual a dominação entre humanos, animais e toda sorte de coisas que existem – não obstante o nome do valor da nossa moeda – real – como mais um adendo a clamar pela crença na sua veracidade – na sua realidade ou realeza – como alguma forma de verdade inerente, um sangue azul que, todavia, não existe. O dinheiro também é mercadoria e manifesta-se na sua forma. Nesse sentido, o trabalho de Pedro Victor soube capturar o princípio estético – o fetiche da mercadoria – involuntariamente desmistificado pelas agências bancárias, sistematizando-o na Pintura Antifurto como experiência de crise subjetiva – o sujeito diante da máquina de autoatendimento que perde a fé.
Rio de Janeiro, 20 de outubro de 2011