Saiba mais – Natália Quinderé, 2023

Publicado na ocasião da exposição Mais Abstratas, Portas Vilaseca Galeria, 2023.

Pierre Bourdieu escreveu, em A produção da crença (1977),  que o comércio da arte seria “um comércio das coisas de que não se faz comércio.” A frase de quase meio século atrás recorta a produção que Pedro Victor Brandão vem desdobrando desde 2013. Seus trabalhos de fotografia, vídeo, pintura, escultura e som expõem, conversam, torcem, mineram concreta e simbolicamente o sistema financeiro. Pedro, ao produzir esses cruzamentos, desenha parte da cadeia produtiva do trabalho artístico – execução, circulação (posts no Instagram, feiras de arte e museus), venda, item de coleção. O trabalho de arte é um ativo circulante. Sua mobilidade caracteriza a obra de arte na sociedade burguesa do Estado capitalista. Pedro tem fabricado esse amálgama, entre trabalhos de arte (suas histórias e teorias) e o processo de abstração financeira, que irrompe a economia global e, em um cenário micro, nossa rotina diária.

Qual foi a última vez que você contou dinheiro? Moedas? Usou PIX? 

Vista para o nada (Sem título #1 a #36) é uma série realizada com filmes para a fotografia instantânea. Pedro não utiliza aparelho fotográfico. O artista controla o tempo da reação química produzida no encontro entre líquido alcalino e as duas bases que compõem o filme. O resultado final da fotografia também depende das variações da pressão atmosférica, luminosidade e temperatura do ambiente. Da repetição da técnica, são realizadas 36 paisagens coloridas, de tons azuis, verdes, vermelhos, lilases, amarelos e pretos. Essas imagens instantâneas, pelo volume e textura, me recordam os sanduíches de cola colorida, esmagada entre dois papéis separados logo em seguida. São impressões. Minha brincadeira, diante dessas paisagens montadas, na galeria Porta Vilaseca, com espaçamento e altura respeitadas milimetricamente – uma depois da outra, depois da outra, depois da outra –, é reconhecer, nesse horizonte cúbico e repetitivo, formas onde não há nada para ver. 

Bandeiras de um Brasil derretido. Superfícies lunares. Horizontes campestres. Um pedacinho das ninfeias de Monet. Uma mistura impossível de líquidos viscosos derramados na superfície branca do papel fotográfico. 

Pedro decide, da série de 36 paisagens, mostrar uma cópia ampliada de Sem título #24. O procedimento de reprodução e ampliação em grande formato, com alta resolução, é repetido pelo artista na emissão de tokens não-fungíveis para cada um dos originais, apresentados na galeria. Em “Mais abstratas”, o que vemos diante de nós, no espaço expositivo, está sempre no espaço virtual, também. Nele, é possível tirar cópias não autenticadas dessas paisagens com os arquivos contidos nesses instrumentos financeiros. Uma vez vendidas em um par físico e digital, é possível comprar apenas o token não-fungível de um desses 36 originais de forma secundária em qualquer mercado descentralizado, optando por jamais emoldurá-lo ou montá-lo na parede de sua casa.

 

O token não-fungível – NFTs – é um ativo (circulante) digital não substituível. A cédula de 10 reais, por exemplo, é fungível. Posso trocá-la por outra de dez reais = por duas notas de 5 reais = por cinco notas de 2 reais = por dez moedas de 1 real. Essa equivalência não acontece com os NFTs. Eles possuem um traço que diferencia cada ativo digital (imagem, som, vídeo, áudio, jogo, metadados, etc.), emitido na rede. Pedro joga com esses traços “não substituíveis”. Faz circular essa série e outras, no espaço da galeria e no espaço virtual; no circuito das artes e no sistema financeiro; coloca o discurso da história e teoria da arte em conversa infinita com a linguagem de dados. O trabalho de Pedro, cada vez mais, é (in)formado por esses jogos. 

Escutamos nas escadas um compilado sonoro inédito com 600 publicidades extraídas da Biblioteca de Anúncios de Meta – ferramenta de transparência que lista campanhas ativas e inativas veiculadas ao Instagram, Facebook e Messenger. Com 8 horas de duração, o equivalente ao expediente de trabalho na galeria, Pedro acumula, em Clique no saiba mais, da série Detremura; o falatório alheio de como seria possível ganhar dinheiro clicando… Aqui! Aqui! Aqui! E aqui! Esse trabalho sonoro, exposto em um lugar de passagem, é paradigmático para entender essa massa de informações que o artista costuma acumular e agenciar em seus projetos. Há no movimento ascendente e descendente dos visitantes, nas escadas da galeria, uma equivalência da rolagem infinita dos nossos dedos, pra cá e pra lá, na tela do smartphone. Nossa atenção está em captura: boca, olhos, ouvidos, corpo, coração. Esses fantasmas tagarelas nos vendem dinheiro. 

“Olha, se você, assim como eu, está cansado de ver anúncios… Dá uma olhada aqui nesse valor: mais de 10.000.000 de reais que ganhei com as minhas empresas virtuais, sem precisar aparecer, de forma 100% honesta.” 

Pedro tem ensaiado a construção de narrativas escatológicas do capitalismo cognitivo. Às vezes, o dinheiro é personagem principal de suas especulações; noutras, é a máquina que move a história. Diante das sensações de tragédia, riso, melancolia e falência que Clique no… podem provocar, resta assinalar um dos recalques fundadores da modernidade colonial: a acumulação de riquezas. Acumulação, conseguida com trabalho de indígenas e africanos escravizados, extraindo ouro, prata e outros metais preciosos, em países periféricos, como o Brasil. Dinheiro não dá em árvore. Não cai do céu. De onde ele vem? Qual o custo? Custa para quem? Como ganhar muito dinheiro? Trabalhando? 

Na época da abstração monetária, do mercado de ações da Faria Lima, da alta de juros, das nuvens de dados criptografados, da criação de metaversos, das bolhas imobiliárias, sabemos que o lastro se perdeu há muito tempo. Não é possível medir a riqueza de um país pela quantidade de reservas de ouro, prata, cobre. Mas, aqui, governa uma pegadinha da “abstração” econômica, no tempo do petróleo. O dinheiro está em algum lado, circulando, preservado em algum paraíso fiscal ou, quem sabe, em algum bunker duty-free art, sendo degustado por 1% da população mundial; em detrimento de outra, cada vez mais endividada. O que foi sendo transformado, com a abstração financeira, foram os métodos, alianças e os marcos regulatórios estatais que possibilitam a acumulação (cósmica) de dinheiro, concentrada nas mãos de poucos. 

Em Totalidades (Sem título #42 a #47), Pedro Victor produz uma série de seis pinturas de gráficos da evolução nas vendas de cinco setores da economia – tokens não-fungíveis, arte e antiguidades, joias com diamantes naturais, jogos eletrônicos e armas –, de 2019 a 2024. Esses gráficos materializam a evolução econômica desses setores (note: nas duas primeiras pinturas não há mercado de NFTs; também os trabalhos desta série não foram emitidos como tokens por serem pinturas “naturalmente” não-fungíveis) e nos dizem onde existe circulação de dinheiro, para além das moedas fiduciárias. Ao mesmo tempo, os gráficos são pinturas. Pinturas abstratas que se multiplicam, com variações mínimas, de um padrão formal predefinido pelo artista. Essa lógica de reprodução infinita está em Torneira, da série Tela preparada, dessa vez como tabuleiro em que a participação de visitantes determina snapshots emitidos como NFTs que podem ser colecionados gratuitamente ao longo da exposição.  

Nuvem, Continente, Ilha é índice da trajetória de Pedro e de sua relação com a fotografia. O artista nasce no laboratório de revelação da família que, como outros, não sobrevive à revolução digital. Cada um dos vídeos é realizado pela execução de um script em fotografias de nuvens carregadas no céu. O script vai iluminando, pontinho por pontinho, cada imagem. A série de vídeos é metáfora desse conjunto de trabalhos expostos em “Mais abstratas”. Nuvens de formatos variados, com densidades distintas; e, sustentadas no céu, por processos técnicos, história e teoria da arte, programação pesada, administração de dados criptografados em blockchains, tokens não-fungíveis. Pedro nos faz olhar para as nuvens carregadas no céu e, nos adverte, é preciso compreender o movimento e a composição das nuvens dentro das máquinas que não saem das nossas mãos.  

A predefinição de técnicas que, em certa medida, determinam o resultado de cada uma das repetições que compõem “Mais abstratas” performa um sentido irônico para a arte abstrata. Os movimentos de artistas, desde o início do século 20, em direção ao abstracionismo (contra a representação, contra a pintura de cavalete, contra a História) serviram para forjar uma teleologia da história da arte. É uma narrativa que gira ao redor das especificidades de cada meio artístico, sendo a pintura o principal. Em uma pintura abstrata, precisaríamos observar as pinceladas, as cores, o tamanho da tela, o corpo do artista na obra… Essa história, encerrada na análise do meio, obliterou os usos políticos e econômicos da arte abstrata, do abstracionismo especialmente, pós-45. 

Existe um diálogo entre duas personagens da série Mad Men, na frente de uma pintura com tons de vermelho de Rothko, exposta atrás da mesa de trabalho do dono da agência de publicidade: “- Não acho que tenha significado. – Sou um artista, certo? Deve ter algum significado. – Talvez não tenha. Talvez você tenha que passar por essa experiência. Porque quando você olha para a pintura, você sente algo. É como se olhasse para algo profundo?” A partir da segunda metade do século 20, uma pintura abstrata estará pendurada no lobby de toda grande corporação espelhada nova-iorquina. O diálogo entre os dois publicitários, na sala do chefe, indica o que a publicidade tenta nos vender faz tempo: experiências.  

Estamos hipnotizados. 

Natália Quinderé
22 de abril de 2023