Adentrar a escola do valor – Leonardo Araujo Beserra, 2019
Publicado na ocasião da exposição Forjada e Outras Formas, Portas Vilaseca Galeria.
Calçada
É certo que há um mundo abstrato, completamente criptografado, sendo erguido há mais de vinte anos nas frestas, rachaduras e porões da internet. Um espaço povoado por colaborações entre indivíduos que são letras. Que se utilizam de objetos imateriais para sobreviver. Os quais deste lado da realidade se convertem em números quantitativos e desqualificados.
O filósofo tcheco Vilém Flusser costumava dizer que os números não são lidos (A Escrita – Há futuro para a escrita?, Editora Annablume, 2010), que eles não produzem som, que apenas os reproduzimos em fala pois há a necessidade de explicitar a existência da abstração que neles representam os fragmentos dos mundos.
Em Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins (Cultura e Barbárie, 2014) de Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, que é uma espécie de manifesto filosófico pós-ecológico anticapitalista, esta abstração numérica se demonstra por meio de mitocosmogonias que atravessam as próprias representações de mundo. Parece que os autores se descabelam para demonstrar quão cheios de inícios estamos. Se na matemática temos o 0 como elemento fundador da contagem, na mitologia grega Gaia seria para os autores a própria superfície da Terra, linha tênue entre o ar, céu; e a lava, inferno, numa perspectiva cristã. Porém, é apenas com aqueles povos dotados de origem, melhor, sem referências ocidentais, que se pode reconhecer as mitologias que fundam a humanidade como 0, pois antecedem o surgimento da Terra. É o caso específico dos mitos ameríndios.
Imagine, desde já, que vive-se por meio de fragmentos que se conectam entre si. Estas são as experiências. Impossíveis de serem captadas em uma rede, as experiências vividas são minúsculos fragmentos de tempo e espaço que qualquer singularidade obtém ao longo de toda uma vida. Estes fragmentos são impossíveis de serem contabilizados.
Assim é a leitura que o psicólogo francês Josep Rafanell I Orra realizou do texto de Danowski e Viveiros de Castro ao escrever Fragmenter le Monde (Editions Divergences, 2018). Neste artigo, Rafanell I Orra inverte a equação neoliberal de fragmentação econômica e política a fim de fazer uma ode ao que odiamos na existência deste mundo. Temos verdadeiro horror à separação, ao isolamento que o liberalismo político vem nos forçando a exercer cada vez mais por meio de sua economia das formas de vida. Mas o psicólogo, com uma espécie de numerologia sem números, nos arranca da história do pensamento ocidental para demonstrar que os mundos abstraídos que constituímos no decorrer da vida não produzem som porque não soubemos até o momento colocá-los em uma rede de significados que façam sentidos. Por isso as experiências, até o momento, poderiam apenas sucumbir às memórias. Mas Rafanell propõe que os mundos existentes em cada uma delas sejam desde sempre realidades fundadoras do ser. É assim que ele acredita contribuir às comunas em curso, estas que imaginamos todos os dias, estas que já foram exaustivamente exercidas nas práticas mitológicas ameríndias de humanos zerificados. Elas existem, mas não estão visibilizadas.
Porta
Forjada e outras formas é um objeto abstrato que avança em uma pedagogia pouco explorada na atualidade, a da economia sem controle, mas não Ancap (o atual anarcocapitalismo não é anarquista, que isso esteja aqui definido). A exposição apresenta diversos fragmentos de finanças invertidas, menos duras, maleáveis a um tipo de pirataria que não expropria, mas cria em si os meios de fazer circular moedas invisíveis, ícones criptografados, signos obtusos, valores de qualificação da vida.
Os primeiros fragmentos da exposição que se quer discutir aqui são as telas de celular quebradas, apresentadas tal qual os displays chamarizes utilizados por lojas de reparo de aparelhos móveis nas calçadas da Santa Efigênia (bairro central da capital paulista). Um exemplo, para isso, seria caminhar e observar estes vendedores. O que eles utilizam como suporte de contenção destes objetos? Como eles se movimentam? Qual é a narrativa produzida por eles ao abordarem os passantes?
De um lado para o outro, sempre em conversas cruzadas, pausadas constantemente por chamados aos potenciais clientes, estes vendedores carregam placas de papelão envoltas por grossa fita durex que seguram as telas de celulares de diferentes modelos e gerações. Neles se percebe a abundância dos objetos, em nós, a escassez – temos apenas um celular em nossos bolsos ou bolsas. O mesmo ocorre na série Sem Conserto de Pedro Victor Brandão, porém, com uma diferença: os celulares em nossos bolsos funcionam e os que o artista nos apresenta estão visivelmente quebrados. E é nessa anti-lógica que está a inversão financeira de Forjada e outras formas. A lógica de venda de um objeto comum que existe em abundância, mas que como abstração de uma prática comum à apropriação, oferece-se o desejo pela anti-funcionalidade da arte, pela relíquia contemporânea, pelo “mineral” sem utilidade. Não é assim que até hoje se exploram terras e povos para extrair pedras e metais preciosos ao redor do mundo? Até mesmo fora da Terra, nos asteroides que giram em torno do Sol, no Cinturão de Órion, há empresas especulando finanças para sua exploração.
De modo simples e direto, a exposição se inicia com fragmentos que muitas vezes não estão nem um pouco distante do modus operandi comum dos dispositivos da arte contemporânea. A série Sem Conserto nos deixa claro de onde parte Pedro Victor, ainda que seu trabalho intente apontar outros mundos possíveis (e isso ocorrerá aqui também), é clara a necessidade de iniciar este processo ainda no que se conhece, no que se considera normal no meio: a prática ready-made de reavaliação dos significados das coisas que no mundo fazemos habitar.
Sala de espera
Em Forjada, fragmentos que contêm em fotografia a união de inúmeras imagens de objetos ornamentais de prata acumulados em uma espécie de grid do Instagram construído por nove molduras quadradas, é possível perceber de modo direto o que o artista almeja: a prata é um tipo de acumulação financeira antiga, que servia como moeda de troca para famílias que, em algum momento, se utilizavam de seus objetos para qualificar a riqueza conforme a quantidade de metais que obtinha. Isso se costumou chamar de bulionismo ou bulhonismo, prática inerente ao período mercantilista da civilização ocidental exploradora de colônias. Mais uma vez o artista nos coloca na contradição do desejo. Agora, sem objeto real, dá os primeiros passos à especulação financeira que irá alcançar ao longo da exposição. Em imagem, um tanto bela por sua qualidade nas texturas, nas profundidades dadas pelos pretos e brancos das sombras e iluminações em cada ornamento de prata, o que Forjada resguarda não é apenas uma deflagração da história do poder na sociedade colonial, mas também um modo de deflagrar a liquidez financeira de um período que não deixou grandes resquícios econômicos às atuais gerações.
Somente depois de apreender com Forjada que há uma enorme quantidade de objetos ornamentais espalhados pelo mundo formados por metais “preciosos” que não encontram mais meios para se fazerem circular enquanto dinheiro, é que pode-se dizer que os fragmentos da exposição se constituem por meio de uma especulação financeira própria do mundo da arte, mas que representam um todo econômico bastante natural à administração do dinheiro contemporâneo. Porém, ainda não é neste momento que o salto para alcançar um submundo descentralizado de poder econômico ocorre ou é proposto.
Corredor
Como todo ensaio, é necessário incutir na narrativa um momento de transição, em que se passa gradualmente, numa espécie de degradê, ao que se quer evidente, proeminente na discursividade que vai se criando na leitura do espaço narrativo. Assim é neste texto e na exposição que nele se ergue.
No fragmento Retornável, a literalidade do título não se replica no objeto. Ele resguarda, a exemplo dos quadros de aviso com fechaduras de condomínios e escolas, como suporte e moldura, um invólucro de papel envelhecido. Na superfície destes papéis, Pedro nos apresenta em uma escrita à mão endereços de carteiras de criptomoedas, uma delas para abrigar um token não-fungível emitido pelo artista. O verso dos papéis contém as chaves privadas – sequências de palavras – que destrancam as carteiras, no entanto estas senhas estão escondidas por uma folha de prata. Cada uma das peças dessa série deriva de um contrato não-apresentado que abre um processo de capitalização a longo prazo, estabelecendo que o comprador deste fragmento da exposição irá alocar recursos financeiros sob tutela artística.
O retorno do dinheiro de compra do fragmento não é bem uma prática do colecionismo, mesmo que hoje em dia ainda haja certos investidores na arte contemporânea que especulam principalmente em cima de artistas em clara ascensão no mercado. O que em Retornável ocorre é um investimento imaterial que o comprador acaba por fazer em contrato seguindo um regime de copropriedade no momento da compra do objeto. Mesmo que o comprador não deseje investir, tendo interesse unicamente no material adquirido, se torna invariável que parte de seu dinheiro se replique ao longo do tempo em uma abstração financeira criada pelo artista. Ou seja, o objeto de arte proposto por Pedro, neste caso, ultrapassa os limites da apropriação a fim de se tornar também um meio de administração financeira da vida do comprador e, mais ainda, do vendedor, que retira sua porcentagem de capitalização do investimento que foi imposto na compra do fragmento, já que se tornou o mantenedor de uma especulação financeira.
Esta eco-economia proposta em Forjada e outras formas é o que até este momento se deseja fazer claro, porém como um ponto de luz na escuridão, a ecologia da abstração é apenas uma forma de vida criadora de mundo, implicada em uma rede de obrigações. É com esta expertise em fazer dos desejos dos compradores um meio de sobrevivência financeira dos vendedores que se quer aqui apontar uma pedagogia da economia descentralizada.
Sala: aula teste
Bem, somente agora, nesta parte do texto, pode-se iniciar o que se pretende: uma tentativa falha de aprender a administrar as experiências. Leia-se aqui “experiências” como números, e “números” como dinheiro especulado, e “dinheiro especulado” como valor. O valor, desde já, não é uma quantificação. Ao contrário, ele é um meio de qualificação, pois sem suas retaliações morais, é o modo pelo qual pode-se fazer governar a vida no atual estágio avançado do capitalismo.
Não se quer dizer que saber administrar o dinheiro é gerar a autonomia necessária para a autogestão. Também não se quer dizer com isso que não necessitamos de dinheiro. O que se diz é: há um mundo abstrato, completamente criptografado, sendo erguido há mais de vinte anos nas frestas, rachaduras e porões da internet. E que este mundo deve ser, antes de qualquer coisa, compreendido, pois ele é fundador dos mundos por vir, e somente depois de o entender será possível dominá-lo, no sentido de usá-lo com destreza suficiente para gerar outros mundos possíveis.
Isto é o que está proposto pelo sociólogo canadense Brian Massumi em seu último livro, 99 Theses on the Revaluation of Value – A postcapitalist manifesto (University Of Minnesota Press, 2018). Sua ideia é fazer dos indivíduos já fragmentados ao redor do planeta, produtores de fragmentos abstratos. De tornar possível que a miséria da experiência não se alastre ainda mais, fazendo dos governados pela administração das bolsas de valores, bancos, seguradoras e governos, potenciais hackers, artistas e especuladores piratas de um submundo descentralizado, que engendrem diariamente mundos reais, mas imateriais.
Imagine mais uma vez um banco de investimento criptografado que mantém suas ações espalhadas por diversos indivíduos, os quais são letras neste submundo, que administram experiências abstratas, criptomoedas, números soletrados, dinheiros especulados a uma revolução que neste momento ocorre. Acredite, isso já existe e está em pleno vigor, mas nós ainda não sabemos como.
Pense que agora mesmo, lá onde o capitalismo ainda não se estabeleceu completamente, no oriente, os tantos grupos libertários que lutam contra instituições terroristas e Estados ditatoriais, estão se estabelecendo em um autogoverno feminista constituído pela democracia direta, sendo financiados porque muitas letras (indivíduos) compraram números (tokens) que estão sendo administrados em diferentes investimentos especulativos por outros mundos que foram criados em seu processo. Um mundo no plano material, que é diferente do mundo que se encontra os fragmentos de Forjada e outras formas e este texto, está em emergência porque diversos e diferentes outros mundos imateriais se articulam em uma rede enorme de fragmentos, que o sustenta no plano imaginário e no plano que circunscreve os fenômenos da natureza humana. Talvez este seja o objetivo de Pedro Victor Brandão, contribuir verdadeiramente às comunas em curso, através da comunização da economia.
Leonardo Araujo Beserra
maio, 2019