esquecer, explodir, assinalar – Bernardo Mosqueira, 2010

Publicado no catálogo da exposição entre-vistas, do
Programa Aprofundamento 2010. EAV Parque Lage.

Eu estava indo dormir. Pedro estava acordando. Ou o contrário. Nós nos cruzamos, nesse começo de manhã, na cozinha de um albergue na Grande Pinheiros que é São Paulo. Após 5 minutos de conversa, surgiu a questão: “Seria a guerra a arte levada às últimas conseqüências?”. Os trabalhos de Pedro Victor Brandão apresentados na exposição “entre-vistas”, realizada em função da conclusão do Curso de Aprofundamento da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, podem ser considerados (se atentamos à radicalização da (re)ação sobre o que se muito acredita) bombas-relógio que utilizam poética artística como explosivo.

Um dos trabalhos apresentados, continuação da série Alicerce Infiltrado, é um conjunto de 10 fotografias, que mostra colônias de liquens que se desenvolveram sobre paredes infiltradas da própria Escola. São processos simbióticos de bactérias e fungos que, aproveitando a instabilidade de um certo meio, criam, coletivamente, a estabilidade necessária para sua vida e reprodução. A técnica apurada, precisa e certeira resulta no registro de caóticos, coloridos e numerosos melanomas que podem ocultar metástase óssea ou cerebral.

Sendo parte de uma turma que, particularmente, muito discutiu a própria instituição onde estudou, Brandão sabe que sua criação de novos curtos circuitos de olhares é uma forma de Ação de grande potência transformadora.

O outro trabalho exposto na mostra, Sem Título #2 (Tempos Autorais), da série Curta, é uma fotografia em gelatina e prata não fixada que comenta as “comemorações” pelos 300 anos da primeira lei de copyright (Statute of Anne Reginæ), colocada ao lado da presente lei dos direitos autorais brasileira: uma das mais restritivas do mundo. A comparação anuncia a estranha e enorme semelhança. Sem a utilização do fixador, em 40 dias, a imagem, exposta ao sol, desaparece.

Na parte superior da imagem, a escala de cinza é uma escala de tempo: é o contador da bomba poética relógio que tem seus vestígios vetorizados na concepção. Quando a diferença entre o que era preto e o que era branco não existir, acabará o pavio. Pedro gera seus trabalhos como estudos estéticos, mensagens criptoparanoigrafadas transformadoras, obras poderosamente efetivas e afetivas que, talvez, pretendessem a inexistente imaterialidade, mas, de fato, alcançam a impermanência física.

Brandão torna explícita a luta frustrada pela fossilização do tempo. É ainda a velha luta do homem contra seu fim inevitável. Mas a transformação fortalece! O monumento institucional com todas suas forças de conservação não vence a vida que corre. São os liquens que colorem o cinza monumental criado a eternizar suas intenções ideológicas de origem. São as imagens que “findas, muito mais que lindas, ficarão”.

Um tempo depois, eu estava indo em direção à praia e Pedro estava voltando. Ou o contrário. Nesse encontro, em maresia carioca, discutíamos, bobos, sobre artista e contemporâneo. Ele já acreditou a atividade artística como solitária. Eu não acreditei. No final, chegamos a que o artista com atividade, em real, contemporânea não seria tão apenas um assimilador de seu tempo (“antena da raça”). O artista contemporâneo deve ser um assinalador de obscuridades atuais.

Com os trabalhos expostos nesta mostra, Pedro assinala o esquecimento como entidade ontológica, como prática necessária e como processo inevitável. Brandão mescla a imagem endógena do apagamento à imagem exógena do apagar. Ao enquadrar o esmaecimento, mas sem emoldurá-lo, deixa claro que o processo acontece em todo espaço. Ele evidencia, ainda, o paralelo entre a memória e a imagem, o apagamento e o esquecimento e o faz costurando as questões universais do homem às questões locais e temporais em que vive.

Eu reclamei, ainda na beira da praia, e ele assumiu: “Sim, esse sentido de permanência é bem crítico e tolerante. Estávamos falando de um tempo possível, passado ou futuro. A atividade solitária era aquela do artista que cria imaginários, percebe obscuridades e as assimila historicamente. Era. Agora, condividimos nossa ética e estética.” Ah bom! Pelo menos, é isso que “agora me lembro. Antes me lembrava outro. Dia virá em que nenhum será lembrado. Então no mesmo esquecimento se fundirão.”