Pintura Antifurto – Bernardo Mosqueira, 2011

No dia 20.10.2011 a Casa França-Brasil promoveu a mesa redonda sobre a Pintura Antifurto, realizada dentro na Ocupação Cofre, pela qual artistas mostram seus trabalhos numa sala de 2,40 m² sem função definida desde a transformação em Centro Cultural desta construção que a partir de 1820 funcionara como a primeira Praça do Comércio da cidade. Participaram Marcelo Neder Cerqueira, cientista político; Bernardo Mosqueira, curador independente; e Pedro Victor Brandão, artista visual. Esta a transcrição da fala de Bernardo.

Bom… Boa noite, antes de qualquer coisa, eu gostaria de agradecer à Casa França Brasil por esse espaço maravilhoso e por ter reconhecido esse espaço ao Pedro. Gostaria de agradecer vocês que vieram ouvir o brilho desse menino, a genialidade desse outro menino, Marcelo, e os absurdos que eu falo. E, principalmente, queria agradecer ao Pedro pelo convite de estar aqui. É uma puta honra estar aqui falando sobre esse artista que eu acredito ser dos mais relevantes e interessantes e bem situados dessa geração de artistas brasileiros.

Acredito que, antes de discorrer sobre o esperado, preciso localizar, pra quem não sabe, o lugar de onde falo. Não tenho pretensão nem intenção alguma de simular a posição de cientista, analista ou crítico imparcial e impessoal “das artes”. Pra mim, na verdade, não seria difícil falar sobre o trabalho do Pedro. Pedro é um grande amigo, generoso, com quem eu aprendo constantemente, de cujos trabalho e pessoa eu tenho proximidade e, por quem eu nutro um certo tesão.
E é desse ponto que eu falo.

Mesmo assim, por essas incoerências que me são estruturais, eu trouxe três ou quatro pequenos recortes de textos pra guiar essa conversa. Ah, e pra quem não soube, também, eu estou abrindo, nessa data (hoje), uma curadoria no Sérgio Porto (KHAZA, de Claudia Hersz) e todos estão super convidados a estarem junto, na sequência daqui, umas oito e meia.

Bom… vou começar a fala citando uma conversa que tive com o Pedro e com Maíra das Neves em que nos perguntávamos “O que pode a arte?”. Atenção: Não era “o que é arte”, “o que pode ser arte”, nem “quem pode fazer arte”. A pergunta era (e é) “O que a arte pode?”, “O que pode a arte?”. Eu não pretendo responder a essa pergunta aqui, porque não estou em lugar de responder, mas mais de questionar, indagar e incitar processos de reflexão.

Pois, neste trabalho de Pedro, o que a arte pode é exatamente incitar processos de reflexão.

Então, a primeira leitura da noite: é do mestre Drummond: o livro é “o sentimento do mundo” (que é dos melhores dele) e o texto, a poesia é

Mundo Grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem… sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo…
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

Drummond é um poeta que se equilibra entre a completa descrença no… do homem e a intensa fé de que o homem pode, de que o mundo pode, de que o homem pode o mundo, de que o homem pode o mundo modificar.

O poema começa com alguém que percebe que o próprio coração não é maior que o mundo, que seu coração é muito pequeno, que grande é o mundo. Mas, com o tempo, esse alguém percebe que o mundo cresce sem parar e, por isso, não cabe no coração. Mas, por fim, ele entende que, assim como o mundo cresce entre o fogo e o amor, o coração também pode crescer entre a vida e o fogo. Então, o coração cresce. Até que explode e transforma coração e mundo numa coisa só. Assim, ele termina, afirmando que “Ó vida futura, nós te criaremos”.

Esse trabalho de Pedro sobre o qual estamos aqui pra falar, é um sensibilizador. Já seria um sensibilizador simplesmente por assinalar uma estrutura de poder que é cruel, mas o faz em duas esferas. Em um nível de profundidade médio, mas de efeitos mais imediatos, ele (“denunciar” não é uma verbo bom) nos faz perceber ou realizar em consciência as marcas de uma estrutura de poder que é cruel, que defende a propriedade e não a vida. Seria uma espécie de posicionamento “específico”, falando da questão das notas tingidas em casos de explosões, de roubos e de aumentos de caixas eletrônicos etc.

Mas em um nível mais profundo, esse trabalho atinge algo de radical no capitalismo e, por isso (“antena da raça”) Pedro se mostra ponta de uma geração que vê o mundo perceber a impossibilidade de prosseguimento de vida com a ideologia que é hegemônica.

“O dinheiro tomou valor objetivo” diz o livro “economia no alcance de quase todos”.
O dinheiro se tornou objeto perigoso de desejo. E não falo isso como bom franciscano que é todo brasileiro: estou longe de defender a pobreza como método e o sofrimento como fonte de pureza. Caguei pra pureza.

Eu falo de um tipo de justiça que não é de deus, mas não dOS homens. Falo e defendo a justiça DE homens. Quem rasga dinheiro, comete crime contra o patrimônio da União. Que patrimônio da união? A gente vive numa sociedade que é montada pra proteger a propriedade privada. Desde o inicio, como conta Engels n “A origem da família da propriedade privada e do estado”.

Mesmo Os 10 mandamentos – esse importante código moral do ocidente – podem ser resumidos em apenas uma lei: “não tirarás o que é do outro”, a mulher, o poder, a coisa, o dia, a verdade, etc.

O que Pedro faz atrelando o preço deste trabalho a uma moeda esquisita virtual quase incompreensível, corrente, sem lastro e sem bolsa centralizada de valores (mas existente) é exatamente assinalar o fato de que essa não é uma solução, mas que é preciso fazer a mente e o senso crítico habitarem um lugar que não tem como naturais as incongruências desse sistema torto. O Zizek diz que conseguimos, há muito, fantasiar o fim do mundo, mas não conseguimos pensar o fim do capitalismo. É possível a não existência do dinheiro. É possível um novo modo de convivência, de criação, de produção, de habitação… Um novo modo de ser ou de se ser.
Queria ler um outro Drummond que surgiu da vida como I-Ching. Porque a vida é isso, né? I-Ching, trabalho e tesão!

Morte do Leiteiro

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

O leite branco e o sangue vermelho que, em mancha, fusão, formam um terceiro tom. A que chamamos aurora. Aurora – período antes de nascer do sol, quando este não é visto, mas já ilumina parte do céu. Uma espécie de Zaratustra, sabe? Essas notas sangradas apresentam a mancha, a mancha que denunciaria um crime contra a propriedade privada.

Esse trabalho de Pedro é a mancha, a mancha que assinala que não estamos parados, que gente é pra brilhar, que nada é natural. Esse trabalho de Pedro não diz o que virá, mas, no iluminado horizonte que nos revela, somos capazes de ver que a grande mudança está a vir. Esse trabalho de Pedro é a Aurora.