Civilização como Barbárie – Julia Baker e Eduardo Baker, 2012

Publicado na edição 16 da Revista GLOBAL.

Uma recente propaganda da empresa Petrobrás vinculada na mídia impressa mostrava uma representação aérea do Rio de Janeiro na qual as favelas haviam sido digitalmente retiradas dos morros. Parte da população se manifestou contra a presença de um grande número de favelas no Google Maps. Eco-limites e muros de contenção em algumas favelas cariocas. Diversas comunidades sofrem ameaças de remoção por supostamente ameaçar o meio ambiente, mesmo não apresentando nenhum crescimento relevante e já existindo há décadas, como o caso da Vila Autódromo, Santa Marta e comunidade do Horto. Além dessas iniciativas radicais, a Prefeitura do Rio de Janeiro já tentou implementar outras formas de mascarar as favelas como pintar todas as casas de uma única cor; uma espécie de Grécia perdida entre os morros cariocas.

Apesar de já fazerem parte da paisagem urbana, as favelas parecem não existir no imaginário ideal do Rio de Janeiro. Uma cidade imaginada como um oásis de praias e pessoas alegres tem que desvincular a sua imagem da pobreza e sujeira. Por isso a extração deste habitat tão tipicamente carioca das paisagens quando queremos vender o Rio. Da limpeza dos morros à limpeza das ruas.

Um suposto processo civilizatório avançando sobre os grupos vulnerabilizados. O progresso e o crescimento. As imagens não civilizadas de Pedro Victor Brandão apontam para o elo e a problemática que atravessam estes episódios da nossa história recente e ainda em curso. A série Não Civilizada do artista simula passado imaculado invocado na imagem das montanhas virgens. A restauração de uma pureza fictícia e a denúncia da fabricação de um mito de origem.

Empreendendo manipulação semelhante à da gigante do petróleo, Pedro Victor aponta em outra direção. O Corcovado sem Corcovado, O Pão de Açucar sem Pão de Açucar. O retirado é o componente civilizatório. Ausência que oculta. Esconde famosas paisagens não sobrepondo a imagem original com outra superfície, mas retirando daquele espaço o que o torna diferencial. Pasteurização do espaço comum frente à multiplicidade como ameaça. A homogeneidade como meta.

A imagem original de um espaço natural pré urbanização é a imagem criada do que nunca existiu. É um ideal que existe apenas no imaginário coletivo. A verdadeira natureza selvagem. Pensar em uma cidade de volta ao primitivo. A não-cidade onde a presença do homem foi anulada. O olhar porém denuncia a existência do espectador. Aquele que vê a imagem da série vê um cenário através do ponto de vista da câmera e adulterado pela manipulação daquele que a operou. O homem tenta fabricar a ilusão da sua não existência, mas ela está lá. O ideal do espaço natural originário é a apologia do ambientalismo contra o homem. A ficção de que o natural não é produzido e trabalhado pelo homem. Que devemos restituir à Terra sua verdadeira face. A natureza não é natural e jamais pode ser naturalizada, diria Harman.

Este apagamento da contaminação da natureza pelo homem, apresentado por Pedro Victor, não é um ode ao estado natural mas a denúncia desta ideologia que, baseada em um imaginário de retorno ao puro, defende o fim de alguns homens em prol da preservação de um mundo para outros homens. A série nos provoca à refletir acerca da relação entre o discurso desenvolvimentista e certas práticas violentas e violadoras perpetradas por agentes públicos e privados em nome desse lugar de fala.

A questão ambiental – cujo espaço na arte, economia e política vem crescendo – não pode ser analisada de forma estanque e destacada, mas como plataforma através da qual podemos pensar sobre os diversos dilemas da vida contemporânea. Sem cair na falácia do capitalismo verde e afirmando a dimensão comum desta luta. O social colado ao ambiental compondo um espaço de atravessamento. Questão ambiental como questão socioambiental – e não socio-ambiental. Sem hiato.

Como pensar o discurso do desenvolvimentismo através de sua incidência e seu ser incidido múltiplos e multitudinários? Desde o tratamento urbano das favelas cariocas até a construção de hidrelétricas no norte do país. Da restrição cada vez maior à entrada de refugiados no Brasil à criminalização daqueles que resistem à implementação de indústrias poluidoras em suas comunidades.

Stengers, em 2009, afirmou “não me perguntem que ‘outro mundo’ será possível… A resposta não nos pertence, pois pertence a um processo de criação.” O não civilizado de Pedro Victor desnuda o embate ideológico que tenta ser ocultado pelos proponentes da solução desenvolvimentista ao apresentar a utopia (distópica) de um futuro tecnológico sustentável por um lado e pelos defensores do encolhimento irrefletido da distopia (utópica) do futuro primitivo.

A série expõe a céu aberto as ranhuras destes discursos que circulam no nosso imaginário e inconscientes coletivos. As formas de se ver e experimentar a questão socioambiental e a violência do discurso desenvolvimentista. Propõe às subjetividades em resistência um agenciamento transversal e atravessador. (Re)articula a arte com a política menor. No prefácio ao Mil Platôs de Deleuze, Massumi afirma que “um conceito é um tijolo. Pode ser utilizado para construir um tribunal da razão ou pode ser arremessado em uma janela.” Acreditamos que a série Não Civilizada é como obra-conceito que pode, e deve, ser arremessada contra as janelas espelhadas e opacas que tentam esconder de nós o apagamento da nossa alteridade.