Da visão computacional – Pedro Victor Brandão, 2013

Ensaio apresentado no Colóquio “Ciclo de Encontro Aparições e Documentagem”, organizado por Thiago Costa (COMO Clube, São Paulo, 2013).

Desde junho de 2013, houve um aumento significativo em transmissões ao vivo independentes no Brasil. Colóquios, protestos e outras ações inundaram o serviço gratuito de streaming twitcasting.tv de conteúdo brasileiro. Mesmo com uma qualidade precária (os vídeos são limitados à resolução de 320×240 pixels, numa taxa de 10 frames por segundo) essa plataforma fundada em 2009 no Japão associa perfis de redes sociais às transmissões, garantindo visibilidade e potencial viralidade para qualquer usuário de smartphones.

A amplitude desse tipo de ferramenta calcada na instantaneidade pode fortalecer movimentações sociais, mas também é capaz de enfraquecê-las da forma mais democrática possível: ao mesmo tempo em que se cria uma audiência virtual nova e interessada em acompanhar à distância os acontecimentos políticos, dentro dessa mesma audiência podem estar o agente de inteligência, o secretário de segurança e sua equipe, às vezes outros políticos de altos escalões, além de robôs. Eles provavelmente estarão definindo estratégias, salvando printscreens e alimentando um banco de dados para ser cruzado, lido, interpretado ou inferido com tonalidades repressivas.

Os arquivos brutos dos live-streamings ficam acumulados em massa nos servidores do twitcasting.tv no Japão, submetido aos padrões de governança da informação e às leis de direitos autorais de lá, sob uma cessão que o usuário faz quando diz “sim”1. Uma notícia recente mostrou que o Rio de Janeiro é monitorado por 700 mil câmeras2, sejam elas privadas, instaladas voluntariamente por condomínios, associações de moradores e proprietários contratantes de serviços de segurança particular; ou públicas, administradas por secretarias e departamentos de segurança através de licitações para compra de equipamentos e implementação de centros de controle. Dá uma média de uma câmera para cada nove habitantes. Já não está tudo ao vivo?

Estamos diante de um grande problema de edição.

Adam Harvey, artista das telemídias, realiza certas “deformances” com o projeto Computer Vision Dazzle3. Depois de rodar muitos testes com softwares de reconhecimento facial, ele mostra como se precaver da visão computacional, a partir de pontos iniciais:

1. Evite delineadores.

        Eles amplificam principais características faciais.

2. Escureça parcialmente a área a testa.

        A região onde o nariz, os olhos, e testa fazem interseção é uma característica facial chave.

3. Escureça a região ocular.

        A posição e as sombras dos olhos é uma característica facial chave.

Para permanecer imperceptível e para camuflagem funcionar, ela não deve ser percebida como uma máscara ou disfarce, direcionando essa ação para uma estética supressiva, onde o sujeito deforma sua identidade diante de um sistema de controle. O projeto deriva da camuflagem ofuscante4 (dazzle, em inglês), usada na primeira guerra mundial para proteger navios de ataques submarinos, lembrando as origens bélicas das tecnologias informacionais.

Há quase duas décadas, a partir de 1996, um grupo pró-privacidade estabeleceu outra prática de perturbação interativa frente à adoção da vigilância através de imagens de circuito fechado.

Reunidos sob o nome de Surveillance Camera Players5, esse grupo criou uma série de 16 peças visuais para dialogar diretamente com os espectadores involuntários cujo trabalho é vigiar, veiculando em suas telas argumentos adaptados de George Orwell, Wilhelm Reich e Paul Virilio.

A partir de um exercício de conformidade radical para além do sensível, há as pesquisas do artista e professor Hasan Elahi6. No seu site há uma seção, Tracking Transience, onde é possível rastrear em tempo real tudo o que ele faz desde que foi acusado injustamente de terrorismo em solo norte-americano. Em justificativa, ele diz:

“As agências de inteligência, independentemente de quem elas são, operam todas em um mercado onde a mercadoria é a informação, e a razão pela qual a informação tem valor é porque ninguém tem acesso a ela.”

Revertendo a ordem e criando uma rotina de auto-vigilância (ou sousveillance7), ele confronta o monopólio deste “produto”, que seria a privacidade, enquanto se despersonaliza ao alimentar os agentes do FBI que o interrogaram com suas informações. Essa prática consiste na constante atualização detalhada sobre suas refeições, trânsitos, encontros, transações financeiras e índices de produtividade como autor.

Diante de um cenário de transparência radical, onde um número cada vez maior de usuários repete a rotina voluntária de Elahi ao superestimar o uso das redes sociais, dados são convertidos em documentos. Eles podem ser interpretados, dialogando entre si e distribuindo relações ecológicas de inferência. Dados são o material bruto de algumas ações recentes que começam a acontecer por aqui. Para uma experiência completa, é preciso vislumbrar uma falta da complacência e da conformidade com alguns sistemas normativos (incluído aí o de arte) e estar preparado para uma possível crise da memória cibernética, iniciada com uma perda na confiança dos sistemas em rede. Uma tarefa: confrontar a visualidade com uma crítica da visibilidade, enquanto traços desse confronto se materializam off-line, porque a Internet como existe hoje não deve durar para sempre.

Para finalizar, uma sugestão de um performance íntima: olhar diretamente para a câmera de algum dispositivo conectado à Internet (laptop, tablet ou telefone) por dois minutos sem interrupção, sabendo que a câmera está desligada e sabendo também que talvez você assuste um robô.

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1 (“Disputa”, traduzido livremente de http://us.twitcasting.tv/indexlicense.php):

Você deverá resolver quaisquer reclamações, ações ou disputas que você tenha conosco decorrentes ou relacionadas aos Termos de Uso ou ao TwitCasting exclusivamente em um tribunal localizado em Tóquio, no Japão. As leis do Japão incidem sobre os Termos de Uso, bem como qualquer alegação que possa surgir entre você e nós, sem que haja conflito de disposições legais. Você concorda em submeter-se à jurisdição pessoal dos tribunais localizados em Tóquio com a finalidade de litigar todas essas reclamações. Se alguém trouxer uma reclamação contra nós relacionada às suas ações, conteúdos ou informações no twitcasting, você deverá nos indenizar e isentar de (e contra) todos os danos, perdas e despesas de qualquer tipo, incluindo honorários advocatícios e outros custos relativos a essa ação judicial.