Especulações n’A Quinta Renda – Pedro Victor Brandão, 2016

Publicado em inglês no jornal “Transnational Dialogues #2”,
editado por Luigi Galimberti, em 2016 e em português na compilação “Economias Subversivas”, organizada por Adriano Belisario e Bruno Vianna, publicada pela i-motirõ.

Durante o mês de março de 2015, eu fui para o Panamá junto com a crítica e curadora Beatriz Lemos para desenvolver uma pesquisa a partir do um convite para integrar a etapa centro-americana do projeto Lastro – intercâmbios livres em arte1.

Pesquisando a história do país, vimos que o Panamá esteve em domínio espanhol por quase 300 anos (1538–1821), quando se tornou território da Grã-Colômbia até 1903, ano em que os Estados Unidos da América, em disputa com a Colômbia, criaram o país através da administração de Theodore Roosevelt, colocando o grupo bancário JP Morgan como o agente fiscal oficial do novo governo. Essa foi uma das consolidações da Doutrina Monroe na América Central. A criação do país visava interesses puramente comerciais, entre eles o controle total do Canal Interoceânico, que estava começando a ser construído nessa época e que se completaria só em 1914. A imagem do país como paraíso fiscal começa aí.

O título da série de trabalhos que eu comecei lá, A Quinta Renda, alude inicialmente ao processo de devolução do Canal ao país, em 1999. Em alguns monumentos públicos na cidade vimos esse episódio descrito como a “quebra da quinta fronteira”. A posse e a ocupação do Canal pelos EUA era vista como essa quinta fronteira, além das duas fronteiras marítimas, do atlântico e pacífico, e das terrestres, Costa Rica e Colômbia. Junto a isso, percebi uma emergência de “cincos” que retornavam na pesquisa. O surgimento de um quinto poder a partir de 2008, com o começo da era dos grandes vazamentos (Assange, Manning, Snowden) pelos quais a internet, sob um lema de “transparência para o Estado, privacidade para nós” poderia garantir a efetivação desse poder distribuído, para além do legislativo, executivo, judiciário e a imprensa centralizada. Há também a teoria de que estaríamos surfando no inverno da quinta onda de Nikolai Kondratieff, um economista russo que, nos anos de 1920, propôs uma análise cíclica sobre ascensões e depressões econômicas. Essa quinta onda teria começado supostamente em 1971, com a era da economia da informação. Penso também que a quinta renda poderia ser o mais novo elemento de manutenção financeira, além da acumulação primitiva, da dívida com juros, da expropriação direta, e do trabalho assalariado, poderíamos já estar imersos numa democracia dos objetos (Bryant, 2011). Vivemos numa sociedade empilhada, formada por uma megaestrutura (quase) acidental em que “coisas” conectadas entre si acabam por medir e constantemente redefinir nossa reputação frente ao mundo e também como humanos. De um lado, já teríamos as ferramentas para exercer uma renda básica universal, para inverter o papel do consumidor no capitalismo globalizado ou para garantir que esses novos estágios de transparência possam ser usados a favor, e não contra, uma revolução permanente. (Bratton, 2016). Mas de outro lado, parecemos presos a uma definição de realidade em que a crise é o próprio governo (Comitê Invisível, 2014).

Viajamos em março de 2015 dispostos a passar três semanas juntos numa investigação que abrangeu tanto o cenário cultural da cidade (com visitas a artistas, galerias, jornalistas e museus), como a realidade financeira do país. Esbarramos, em vários momentos, com uma legislação fiscal bastante fluída. Empréstimos em dólar são plenamente acessíveis e é possível incorporar uma empresa fantasma sendo estrangeiro com a quantia inicial de 100 dólares, sem precisar pagar nenhum imposto. Nessa pesquisa nos deparamos também com a presença da empresa brasileira Odebrecht na maior parte das obras de infraestrutura urbana do país. Nos últimos 10 anos eles se tornaram a maior construtora do Panamá. O mais recente empreendimento, iniciado em maio de 2016, consiste na reconstrução completa da cidade de Colón, na costa do Caribe, onde fica a maior zona de livre comércio do Ocidente.

Nessas três semanas de pesquisa, nos focamos em dois eixos. O primeiro eixo, que gerou o filme-ensaio A oferta não equivale à procura, foi observar algumas obras da Odebrecht na Cidade do Panamá. A que mais nos chamou a atenção foi a Cinta Costera III, um viaduto marítimo bizarro, que cancela a linha do horizonte e coloca em risco o status do Patrimônio da Humanidade do Casco Viejo, o centro histórico da Cidade do Panamá. As fases I, II e III estão concluídas, mas ainda está planejada uma continuação, com a fase IV.

Quase todas as imagens desse filme-ensaio têm alterações gráficas, através de sobreposições e recursos que liquefazem e pervertem seu aspecto documental. As legendas que o acompanham foram apropriadas de um manual de tecnologia administrativa escrito em 1968 pelo executivo Norberto Odebrecht (fundador da construtora), formando uma espécie de colagem entre missão e realização. É interessante retornar às origens protestantes da empresa exatamente no momento em que a investigação Lava-Jato interrompe um ciclo de parcerias público-privadas mediadas por lobby, tráfico de influências e doações para campanhas políticas que remontam os últimos 60 anos de estratégias desenvolvimentistas.

Alguns planos mostram o novo centro financeiro da cidade, um skyline de prédios muito altos (alguns de mais de 80 andares). À noite, é possível ver a maioria deles com as luzes apagadas. Há uma relação direta entre lavagem de dinheiro e o mercado imobiliário na Cidade do Panamá. Os bem imóveis servem como garantia para a abertura de empresas-fantasma, e em alguns casos, podem até funcionar como moeda corrente, garantindo a estabilidade financeira de elites perigosas, como banqueiros, traficantes de drogas, ditadores, e sonegadores de todo o tipo2.

O segundo eixo, que resultou numa série fotográfica chamada Cynthia nos vê de perto, funciona como uma espécie de contraponto por se tratar um experimento de auto-vigilância, utilizando uma câmera destinada a fotografar animais. Chamadas “trail camera” ou “câmera de armadilha”, elas são disparadas por um sensor de movimento e calor, usadas geralmente por biólogos e engenheiros florestais em trabalhos de campo. Da mesma maneira que estávamos investigando a presença de um capital especulativo, a câmera (batizada de “Cynthia” em homenagem à Cinta Costera) estava nos investigando, nos acompanhando na maioria das caminhadas pela cidade. É um comentário sobre o estado de vigilância global ao qual todos nós estamos submetidos atualmente, e uma maneira de quebrar o monopólio desse produto que virou a privacidade.

Certamente, nos últimos 10 anos, temos visto uma diminuição dos níveis de opacidade de vários sistemas. De fevereiro a maio de 2016, vimos o vazamento quase completo do banco de dados da empresa de advocacia Mossack Fonseca, responsável por fazer a gestão de fundos de mais de 300 mil empresas-fantasma no Panamá – os Panamá Papers. O responsável pelo vazamento escreveu uma carta anônima – o manifesto do João Ninguém – que foi muito pouco divulgada e eu gostaria de trazer um trecho3:

“A desigualdade de renda é uma das questões definidoras do nosso tempo. Ela afeta todos nós, em todo o mundo. O debate sobre a sua aceleração súbita tem sido travado há anos, com políticos, acadêmicos e ativistas impotentes para parar o seu crescimento constante, apesar de inúmeras palestras, análises estatísticas, alguns protestos escassos, e documentários ocasionais. Ainda assim, as questões permanecem: por quê? E por que agora?

Os papéis do Panamá promovem uma resposta contundente para essas questões: uma massiva e perversa corrupção do capital. E não é mera coincidência que a resposta venha de uma empresa de advocacia. Mais do que uma simples engrenagem na máquina da “gestão de riquezas”, a Mossack Fonseca utiliza de sua influência para escrever e distorcer leis pelo mundo afora em favor de interesses de criminosos por décadas.

Empresas-fantasma são costumeiramente associadas a crime de sonegação, mas os Papéis do Panamá mostram além da sombra da dúvida que, embora as empresas-fantasma não sejam ilegais por definição, elas são usadas para constituir uma ampla gama de crimes, muito além da sonegação de impostos”.

Penso que num momento de golpe, como o que estamos vivendo no Brasil agora, onde há um ataque aos direitos democráticos, uma das tarefas da arte é requalificar a palavra “especulação”, não somente a partir de uma abordagem poética do capital, mas pensando interferências ativas nas instituições e constituições que queremos mudar.

Referências:
Bryant, Levi R. “The Democracy of Objects.” Ann Arbor: Open Humanities Press, 2011.
Bratton, Benjamin H. “The Stack: On Software and Sovereignty.” Cambridge: MIT Press, 2016
Comitê Invisível. “Aos Nossos Amigos: Crise e Insurreição.” São Paulo: n-1 edições, 2016.

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